Ser um médico que acolhe as dores dos outros é empolgante e desafiador. Precisamos estudar muito para entender sobre dores que acometem todo nosso corpo. Ao mesmo tempo, sabemos que corpo e alma não se separam e rotineiramente somos ouvintes de nossos pacientes que nos relatam histórias de sofrimento, insegurança, angústia, solidão.
No arsenal terapêutico do médico do século XXI dispomos de medicamentos para tudo! Mas alguém já ouviu falar sobre a existência de um remédio anti-angustiante? Ou um anti-medo? Para isso não há remédios com indicação especificada em bula. Podemos oferecer um ombro amigo, identificar a necessidade de um atendimento multidisciplinar e encorajar nossos pacientes a buscarem um psicólogo ou psiquiatra.
Nesta semana fiquei melancólico. Estava atendendo em Divinópolis, cidade do interior de Minas, onde nasci e consigo exercer uma medicina romantizada, com visitas domiciliares em algumas situações. E estas visitas sempre iniciam ou finalizam ao redor de uma mesa com bolo ou pão de queijo acompanhado por um “cafezin” de bule passado na hora.
Estava com minha fellow* Patricia Milanez e fomos a casa de uma senhora de 92 anos, que vem convalescendo de uma dor causada pelo herpes zoster; uma dor muito forte na altura da mama esquerda. Lúcida, com articulação lentificada da fala, tremores periféricos de mãos, explicou-me com toda simplicidade e clareza: viver é controlar.
Entendi que caso venha perder sua faculdade mental, não lhe restará outra opção que abdicar da luta de manter-se viva.
Não sabia o que responder e permaneci cabisbaixo. Sorte que uma jovem chamada Bárbara estava por lá para agitar o ambiente e deixá-lo mais alegre.
Finalizado este atendimento segui para casa de um casal de amigos: o José Assunção e Adélia Prado. Após uma boa prosa, e percebendo em mim algum desconforto, Adélia declama um de seus poemas que no desfecho encerrava assim: Quarenta anos: não quero faca, nem queijo. Quero a fome.
Minha próxima parada foi com minha terapeuta. Nesta tarde eu tive tanta coisa para conversar…
( *médica que já fez residência em anestesiologia e está em formação para medicina intervencionista da dor)
A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fluid Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.
Adélia Prado